O fetiche em cena
“Dizem às vezes que a beleza é completamente superficial. Talvez. Menos superficial, em todo caso, do que o pensamento. Para mim, a Beleza é a maravilha das maravilhas. Só os espíritos levianos não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, e não invisível...” (Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray)
O filme KIKA (1993), do diretor espanhol Pedro Almodóvar narra a história da maquiadora Kika, que foi contratada para maquiar um defunto, filho de um escritor americano radicado em Madri, chamado Nicholas Pierce. Nesta película, Almodóvar trata do voyeurismo e evoca o filme “Janela Indiscreta”, clássico de Hitchcock.
O personagem Nicholas escreve um livro sobre um escritor que matou sua esposa e afirma ela ter se suicidado para escapar das grades. Num programa de TV ele diz que escreveu esse livro inspirado nas acusações feitas a ele, depois da morte de sua mulher.
Nicolas (Peter Coyote)
O filho do escritor chamado Rámon sofre de catalepsia e acaba despertando durante a maquiagem de Kika. O enteado de Nicholas que parecia morto acorda e ele e Kika se apaixonam e iniciam um relacionamento amoroso.
O estilista Gianni Versace produz o figurino desta personagem, que são vestidos coloridos, decotados, com estampas, saídos da sua coleção de 1992.
O estilo da personagem evoca a moda dos anos 60, com saias rodadas e blusas coloridas, como a roupa desta foto.
Kika (Veronica Forqué) e Rámon (Santiago Lajusticia)
Outra personagem central neste filme é Andrea Caracortada (Victoria April), que trabalha como apresentadora de um programa de TV sensacionalista e apresenta as desgraças humanas, do cotidiano de Madri. Ela é ex-psicóloga e depois de ler os roteiros de Nicholas para seu programa, ela deduz que seus personagens retratam ele mesmo, um serial killer muito perigoso. Ela começa a espionar a sua vida, em busca de um furo jornalístico e as relações entre estes personagens se cruzam e ocorrem várias situações inesperadas.
Andrea Caracortada (Victoria Abril)
O figurino de Andrea Caracortada é uma mistura da moda vamp, com o glamour de Jean Paul Gaultier. O figurinista trabalhou diretamente com Pedro Almodóvar, durante a preparação deste filme.
Andrea Caracortada (figurino de Gaultier)
No filme KIKA o vestido mais provocativo é o longo preto e justo de Andrea Caracortada, com dois seios de plástico explodindo através do tecido rasgado, um dos figurinos mais marcantes do cinema. (Fashion, 2003, p. 63)
A apresentadora investiga as perversidades humanas e relata-as ao seu espectador de uma maneira gélida e quase abstrata, pois em seu rosto não há marcas de expressão ou sensações causadas pela notícia narrada. Ela simplesmente conta e transforma o pesadelo do conteúdo de suas notícias, em banal.
No estilo noite, Andrea Caracortada utiliza o estilo vamp, como a atriz Theda Bara, dos tempos contemporâneos. No entanto, esta atriz do cinema mudo não ganhou o apelido de uma vamp pela simples façanha de suportar pesadas túnicas de miçangas. Ela tinha uma postura que realçava as suas roupas, em cena. (Faux, 2000, p. 29)
Theda Bara interpretando Cleópatra, atriz vamp do cinema mudo
O estilo vamp surgiu entre as décadas de 20 e 30, em Hollywood e segundo Edgard Morin, a vamp, saída das mitologias nórdicas e a grande prostituta, saída das mitologias mediterrâneas, ora se distinguem, ora se confundem no arquétipo da mulher fatal e universaliza-se rapidamente e a partir de 1922. (Morin, 1980, p.23)
Andrea Caracortada, a apresentadora de TV que veste o longo preto, chama a atenção do espectador pela sua vestimenta, que é mais que uma roupa, porque ela envia informações sobre quem ela é, na verdade.
O figurino é composto por todas as roupas e acessórios dos personagens, projetados e/ou escolhidos pelo figurinista, de acordo com as necessidades do roteiro, personagem, da direção do filme e as possibilidades de orçamento.
Segundo Valerie Steele, a ligação entre a moda e fetiche se tornou lugar-comum com o tempo, como a moda fetichista que aparece como acessórios da “roupa de poder” que foi a principal tendência de moda dos nos 80. A ideia da mulher sendo muito forte predominou e a imagem da “bad girl” também agradou as mulheres, para agradar aos homens ou porque elas mesmas encontram gratificação erótica em itens como sapato de salto alto e lingerie, é uma questão que pode permanecer em aberto. É provável que a imagem de sexo-e-poder da “bad girl” seja parte do apelo da moda fetichista junto às mulheres. (Steele, 1997, p. 27)
Almodóvar, Victoria e Gualtier
O fetichismo se tornou um fenômeno sexual na segunda metade do século XIX, quando os comportamentos sexuais tradicionais começaram a evoluir em direção a padrões mais liberais e foi então que o termo foi empregado pela primeira vez, designando qualquer coisa que fosse irracionalmente adorada.
Sigmund Freud diagnosticou na histeria de suas pacientes os sintomas do efeito da repressão da sociedade contra a mulher. Ele relacionava o erotismo com as roupas íntimas, citando o fetiche, ou feitiço, que acontece quando a satisfação pessoal se dá através de objetos ou ornamentos. (Nazareth, 2007, p. 39)
Freud interpretou o fetichismo em termos de simbolismo fálico, portanto, ele é frequentemente acusado de “falocentrismo”. Para muitas teorias feministas o fetiche é interpretado como um “sintoma” tanto do capitalismo quanto do patriarcado, no seu duplo aspecto de glorificar objetos e objetificar mulheres, numa perspectiva que significa, mais uma vez que o fetiche é sempre masculino, enquanto a mulher se torna o próprio fetiche, segundo Steele. (Steele, 1997, p. 30)
A questão do fetichismo e as roupas, no sentido freudiano do termo, é o substituto de pênis que falta à mulher. Ele ocupa “o lugar de”, numa equação simbólica que deixa de lado a lógica para preencher essa ausência, mantida distante da consciência, pois remete à castração e à angústia que a acompanha. Assim, pode-se achar que, de qualquer forma há um pequeno pênis em algum lugar (o fetiche), mesmo que se sabe que não há.
Como por exemplo, as roupas “de fantasia” que a Caracortada usa em seus programas, revelam uma personagem que se veste de forma fálica, na medida em que ela é sensual, ao mesmo tempo que a personagem fabrica a imagem de uma “supermulher” que escapou da castração.
A imagem de uma mulher forte e sensual como Caracortada agrada as mulheres, porque elas não ocupam o status de submissas diante da sociedade e demonstram a sua ideia através das roupas que usam.
Andrea Caracortada (Victoria April)
Andrea é uma “soldada da informação”. Para as cenas externas, Gaultier criou um modelo utilitário, verde militar, cheio de zíperes e bolsos. Na altura dos seios, duas lâmpadas que se acendem quando a câmera de Andrea, presa em seu capacete, é ligada. (Fashion, 2003, p. 63)
A roupa remete ao robô de Metrópolis (Fritz Lang, 1927), um dos filmes preferidos de Almodóvar e Gaultier. Aldomóvar, além de evocar em seus filmes outros filmes de grandes diretores, também usa a técnica do filme dentro do filme. O filme Metrópolis simboliza a decadência urbana e o colapso da sociedade pós-moderna.
Ao longo dos anos, a imagem feminina passou por grandes transformações e que foram representadas no cinema e que acabou delineando vários perfis femininos, como a vamp, a divina, a glamorosa e tantas outras, como aquelas com o perfil das mulheres de Almodóvar.
Referência bibliográfica:
1) FAUX, Dorothy Schefer et alii. Beleza do século. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2000.
2) FILME FASHION – Grandes estilistas no cinema. Catálogo da exposição no Centro Cultural Banco do Brasil, 2003.
3) MORIN, Edgar. As estrelas de cinema. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
4) NAZARETH, Otávio. Intimidade revelada. São Paulo: Olhares Editora, 2007.
5) STEELE, Valerie. Fetiche, Moda, Sexo & Poder. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
Sites consultados:
Ficha técnica do filme:
Título: Kika
Direção/roteiro: Pedro Almodóvar
Países: Espanha/França
Ano: 1993
Elenco: Veronica Forqué, Anabel Alonso, Santiago Lajusticia, Rossy de Palma (Juana), Victoria Abril (Andrea Caracortada) e Peter Coyote
DVD – comédia
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